“Katherine Funke tem 1,48m de altura. Pronto”. É fácil imaginar o sorriso de Katherine ao nos enviar essa sua descrição, resposta ao pedido para que nos enviasse um minicurrículo de apresentação à entrevista a seguir. E a catarinense há uma década na Bahia tem mesmo motivos para sorrir.
Depois do ótimo Notas Mínimas (Solisluna, 2010), Katherine volta à cena literária baiana com fôlego de maratonista: acaba de concluir uma residência artística em Florianópolis, prepara uma oficina de contos a ser ministrada em Lauro de Freitas, já com mais de 80 110 inscritos para disputar as 20 vagas disponíveis, e está lançando seu primeiro romance, Viagens de Walter (Solisluna, 2013), um e-book gratuito, que você pode (e deve) baixar AQUI.
O Blog de Literatura enviou algumas perguntas para Katherine. Suas respostas, no entanto, ultrapassaram os limites do jornalismo: é o retrato vivo do processo de construção de um escritor.
BdeL – As oficinas literárias têm recebido grande atenção nos últimos meses, você já participou de algumas e agora passa para o outro lado do balcão. Fale um pouco da sua experiência com as oficinas e o que espera da Katherine como professora.
KF – Fico feliz com sua pergunta, pois assim posso esclarecer a proposta logo de cara. O iBahia publicou a notícia da oficina com um título que não me agradou: “Quer virar escritor?”. Nunca prometeria isso. Ninguém “vira” escritor, ao menos é no que acredito.
A ideia é praticar o conto, pois é uma oficina, e também estudá-lo, lendo alguns exemplos de grandes contistas e alguns novos nomes da literatura feita na Bahia e no Brasil. Já estamos com quase oitenta inscritos para 20 vagas, desde adolescentes com blogs de poesia a pessoas com doutorado no exterior: acho que isso mostra a carência de mais oficinas assim na Bahia. Há publico, há demanda, só faltam oportunidades.
Minha experiência com oficina nem é tanta assim. De produção literária fiz apenas cinco: com Luiz Brás (Nelson de Oliveira), Angélica Freitas, Marcelino Freire, Juan Villanueva Chang (da revista Etiqueta Negra, do Peru) e Rodrigo Schwarz, este último jornalista e escritor da cidade de Joinville, SC, onde nasci.
Schwarz nos instigou a escrever um conto em uma hora, acho, e compartilhar em seguida lendo para os colegas. Foi o que fiz. Ouvi o que disseram, aceitei uma sugestão (quase unânime no grupo) sobre cortar o último parágrafo – e esse mesmo texto, “Coração de Galinha”, foi publicado na revista Arte & Letra Estórias, de Curitiba, na Balaio de Notícias, de Aracaju, e depois em Berlim, na antologia de autores brasileiros da editora Klaus Wagenbach, em 2013.
Todos os meus “professores” de oficinas foram simples, diretos, pacientes. Trouxeram grandes dicas em pequenas intervenções. Também quero ser uma oficineira assim. Vou estimular leituras, incentivar o compromisso pessoal de escrever diariamente e estimular a verve crítica, de um lado, e do outro o ouvido humilde/atento na análise dos próprios textos e dos colegas. É preciso sempre se lembrar que cada um fala do seu lugar, de suas vivência, e que não se deve absorver todos os comentários, apenas aqueles que sua intuição julgar como pertinentes.
Dizem muito para mim que um grande risco de oficinas é o nivelamento por baixo, mas discordo. Acho que a gente sai mais reforçado dessa colisão produtiva de ideias, diferenças de pontos de vista e modos de entender o que é um bom conto.
BdeL – Lauro de Freitas é uma cidade com grandes contrastes culturais, sociais e econômicos. É possível extrair uma representação literária dessa mistura? Em termos mais gerais, como você vê o papel da literatura na cidade, sendo, além de escritora, moradora?
KF – Vejo aí duas perguntas de âmbitos bem diferentes.
À primeira posso responder que sim, é possível sim. Em alguns dos textos de “Notas Mínimas” e em outros contos mais longos tenho explorado esses contrastes, mesmo que não cite o nome da cidade. É uma constante fonte de inspiração.
À segunda pergunta, te digo que Lauro de Freitas é pequenina mas abriga muitos autores, de poetas a romancistas, e uma excelente editora, a Solisluna, que publicou “Notas Mínimas” e agora o meu romance “Viagens de Walter”, em formato digital.
Este processo de seleção para a oficina de contos me apresentou pelo menos mais vinte escritores em Lauro de Freitas, autores contemporâneos e conterrâneos, alguns deles com blogs que mostram uma produção regular.
Conheci também algumas pessoas que trabalham em diversos níveis pela literatura, como a equipe da Biblioteca Municipal e um cara chamado Alisson Lima, vice-diretor de uma escola pública. Além de cantar na Pastel de Miolos, ele tem uma banda chamada Macabéa, em homenagem à personagem de Clarice, em que ele escreve, compõe, canta, com grande qualidade literária. Então, com certeza algumas pessoas de Lauro de Freitas, assim como em qualquer outra cidade, reservam à literatura esse espaço do sonho, de fugir da realidade física e partir para uma segunda, uma terceira realidade, onde tudo é possível.
BdeL – As trocas simbólicas e culturais são importantes para qualquer artista. Recentemente, você participou de um intercâmbio em Santa Catarina: o que trouxe de volta na bagagem?
KF – Essa oportunidade da Bolsa Interações Estéticas, da Funarte, me proporcionou uma residência artística de seis meses na Biblioteca Barca dos Livros, que é um Ponto de Cultura super articulado na Lagoa da Conceição. O projeto se chamava “Viagens na Barca” e termina daqui a alguns dias, com o lançamento do romance “Viagens de Walter” em 21 de setembro. Passei seis meses em contato com a comunidade dessa biblioteca, em diferentes situações. Levo pra casa muito mais leituras, pois usei e abusei do rico acervo da Barca. Ainda levarei um bom tempo aprendendo o que aprendi, se é que entendes o que quero dizer. Levo uma inquietação ainda maior do que quando cheguei, uma vontade de estar em contato diário com a literatura em suas diferentes formas: contação oral de histórias, leituras comparadas, grupos de estudo de gêneros específicos e assim por diante. Já estou até com vontade de fazer esse mestrado em Escrita Criativa na PUC-RS, mas como tenho um filho bebê e já fiz toda uma reviravolta de vir com ele para Santa Catarina, ainda não sei como vai ser essa logística no ano que vem. Oh, sim, e já deves ter notado que estou levando também um sotaque ilhéu. Sou de Joinville, lá usava o tu misturado com você; de morar na Bahia passei a usar “você” para tudo; mas aqui virei um ser extraterrestre, misturando você com tu o tempo inteiro. Reincorporei o “tu” da minha infância…
BdeL – E este mês temos livro novo seu nas ruas. Em termos criativos, o que está por trás desse lançamento?
KF – O romance “Viagens de Walter” é um livro em formato digital, um EPUB para download gratuito, para ser lido em celulares, tablets etc, então não vai estar nas livrarias físicas, apenas virtuais (sempre grátis).
O edital da Funarte, que ganhei, era de Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura. Nos três primeiros meses eu tinha esse compromisso semanal de levar para a Barca um bom conteúdo para o público. Li muito e escrevi muito nesse período, mas sempre livremente, sem me preocupar tanto em fechar as possibilidades da trama. Cheguei a imaginar diferentes rumos para a história, achando que seis meses duravam seis anos… Mas, a partir do quarto mês, com o pé no chão quanto ao cronograma, me dediquei quase inteiramente à escrita do livro, pois não tinha mais a obrigação semanal de coordenar o grupo na Barca. Aí sim fiquei mais concentrada na coesão da trama, caracterização dos personagens, voz do narrador, etc.
No quarto ou quinto mês decidi que o livro não deveria ser todo em terceira pessoa; estava usando um tom impessoal demais, achei, embora o narrador tivesse uma capacidade incrível de entrar nas “viagens” de Walter (são deslocamentos geográficos, mas sobretudo sensoriais, espirituais…). Então modifiquei dois capítulos para dar voz e corpo a Walter. Foi bom, ele ficou melhor caracterizado, eu acho, pois consegui uma diferença entre as duas linguagens, consegui imaginá-lo falando, escrevendo, vivendo aquilo.
Admito que não criei um romance pós-moderno, não inventei a roda ou fiz todas as coisas megalomaníacas que a gente pensa que vai fazer e, quando começa a escrever, podem ficar para trás porque outras questões surgem, questões mais de fundo mesmo, como o propósito do romance e o que ele exige de nós como autores.
Mas é meu primeiro romance, só o primeiro; calma… Tive uma experiência anterior de escrever a quatro mãos, com “Maria João”, um livro ainda inédito porque eu e o outro autor, Luis Daltro, ainda estamos trabalhando nele, para aperfeiçoá-lo, apesar de termos deixado uma versão mais ou menos pronta ao término do edital que nos proporcionou fazê-lo, da Fundação Pedro Calmon.
Fazer um livro sozinha é muito, muito diferente. Foi realmente um processo solitário. Falei bastante do livro na Barca, compartilhei momentos do processo criativo, mas não houve quem o lesse por inteiro antes que realmente eu o desse por terminado. Só então, aí sim, passei para quatro pessoas de extrema confiança para que me dessem seu parecer.
Uma dessas pessoas, o Patrick Brock, irmão de coração, jornalista e escritor que mora em Nova York, e estudou literatura lá, fez uma leitura mais focada nas questões narrativas e deu algumas dicas essenciais, como trocar duas frases de lugar no início do texto para dar mais impacto à abertura.
A dois dias do fim do meu prazo com a Funarte, Brock apontou também algumas fragilidades como a falta de descrições em algumas cenas, as potencialidades de alguns personagens não muito desenvolvidos… Trabalhei mais um pouco no livro, a partir desses comentários, mas gostaria sim, não nego, de ter mais alguns meses para aprimorá-lo.
De toda forma,estou feliz com o resultado final. Vejam, nunca estudei literatura formalmente, nunca fui a uma faculdade de Letras para estudar (sou formada em Comunicação, com pós em Jornalismo Contemporâneo), nem mesmo tenho livros em casa de teoria literária (mentira: tenho sim, uns dois, que nunca li…). Sou uma escritora bem intuitiva, mais leitora do que estudante de literatura.
Preocupei-me muito com a concisão. Muito mesmo, a ponto de jogar fora mais da metade do que escrevi este ano, o que pode ter gerado alguns dos problemas que Patrick notou a respeito da falta de detalhamentos em algumas cenas. Iniciei o livro em 2007, 2008, e na época escrevia por blocos numerados, como se cada um fosse um pequeno conto. Imaginei que conseguiria manter essa estrutura, mas minha editora apontou o problema da sensação de narrativa desfragmentada, caótica até, em vez de fluída, organizada. Acatei a sugestão de tirar os números, unir os blocos em texto corrido, e foi bom. Por algum tempo ainda usei os blocos numerados como método de trabalho (cada um tinha de ser “perfeito”); depois deixei de lado essa pretensão de causar tanto impacto estético, em nome do desenrolar da história.
Ainda acho legal registrar nessa entrevista que homenageio Walt Whitman e Robert Walser no livro, assim como João Cabral de Melo Neto e Ondjaki, com breves alusões às suas obras. Não consegui resistir à tentação de incluir essas referências no livro, talvez porque me sinto muito ligada às bases que me impulsionam a escrever. A solidão do ato da escrita faz isso com a gente (precisamos de referenciais constantes) e acabei transpondo-os de uma forma sutil, pontual, no romance.